Ontem passou na RTP1 dois excelentes documentários: Um era sobre a Segunda Guerra e é assunto para outro dia. Hoje falo do outro, chamado “Galegos de Cá e de Lá”, de Júlia Fernandes, que abordou:
“(…) Vizinhos galegos e portugueses nunca se importaram muito com a situação…umas vezes pertenciam a um lado, outras mudavam de posição, mas, no fundo eram todos parentes, a História está aí para prová-lo.
Até que, há pouco mais de cento e quarenta anos, pelo “Tratado de Lisboa”, o estado português e o estado espanhol acordaram numa divisão fronteiriça mais científica, mais apoiada em mapas, a mesma que persiste até hoje(…).
Fiquei absolutamente encantada com o que vi, porque era tal e qual a aldeia da minha mãe; Cavenca, na freguesia de Riba de Mouro, concelho de Monção, distrito de Viana do Castelo. As imagens mais antigas me fizeram recordar mentalmente coisas que a minha mãe contava. Melhor do que qualquer texto que eu pudesse escrever, há um, do meu tio tura, que é lindo, lindo, lindo…
Cá está:
Está Reminiscências – Meu Pai
A imagem que guardo de meu pai é a de um homem velho, quebrado e sábio.
Velho porque, nos seus sessenta e tal anos, foi aquela imagem austera, de rosto enrugado, sofrido e seco que captei com os meus pequeninos olhos e assim permaneceu ao longo dos anos.
Quebrado porque foi assim que ficaram as sua pernas desde que lhe caiu em cima um pesado carvalho, num monte distante, donde regressou a casa numa padiola, consolidando as fracturas, sabe-se lá quantas, na enxerga feita de linho tosco e cheia de palha de centeio, deixando-o dependente de duas bengalas para o ainda longo resto da sua longa vida.
Sábio porque era um regalo ouvi-lo falar de tudo, do mundo, da sua vida cheia de acontecimentos que só uma volta profunda aos arquivos da memória ainda descobre: das viagens migratórias, a pé, para o Douro; da travessia do Marão, antro de ladrões onde o perigo espreitava a cada curva do caminho; do dia de regresso a casa com um mau augúrio sempre presente e que se confirmou ao encontrar a mãe jazendo no leito da morte; do Mestre Escola que o ensinou a ler e escrever; do Padre Bernardino, um galego exilado que naquele lugar do fim do mundo encontrou guarida e deixou um perfume de cultura; da tropa; da guerra civil em Espanha; da fome; das senhas de racionamento; das fugas com os haveres para os bosques longínquos para se furtarem ao controle dos fiscais; da prisão por ousar procurar uma vida melhor em Espanha, ou lá onde quer que fosse; do proibitivo lume que fazia com uma pederneira improvisada para acender o magro cigarro que era mais papel que tabaco; das venturas e desventuras de uma vida cheia de tudo e de nada.
Tinha um lugar de destaque entre os anciãos do lugar e era consultado por causa da partilha das águas, das estremas das propriedades, dos caminhos e servidões, para ler uma carta ou escrever a um familiar algures em França ou no Brasil, para rezar um responso por causa de uma rês que se tresmalhara, para fazer um amuleto que tratava as “bichas” de um pálido bebé que definhava e não se alimentava, para informar as horas que o velho relógio de parede não se cansava de bater…
Era um homem honesto, simples e conformado com o que a vida lhe deu, tão conformado como Jó e, tal como Jó, nunca esmoreceu na fé e agradecia a Deus cada dia de vida, bom ou mau. O seu desprendimento das coisas materiais era total e o pouco que tinha dava sempre para partilhar. Jamais pedinte algum passou pela nossa casa sem que com ele dividisse um naco de pão ou uma simples e magra sopa.
Teve momentos difíceis, alguns de que ouvi falar, outros que constatei, e com ele vivi, e com ele sofri. O irmão, que adoeceu, diziam que enlouqueceu, e morreu ainda jovem preso num quarto, cuja recordação lhe era extremamente dolorosa e de que se recusava falar, o fatídico acidente que o atirou para o catre por muito tempo e marcou fisicamente para o resto da vida, mais uma vez acamou por vários anos. Muitas vezes se disse que estava “arrumado”, mas a sua fibra impediu-o de ceder e outras tantas vezes se levantou.
Só um estúpido enfarte de miocárdio o vergou, sem apelo nem agravo. Foi numa manhã de Outubro, já me esqueci do ano, bem no Outono da vida e da dita estação, tranquilamente, como quem se despede por um instante, que me deixou numa imensa tristeza, hoje uma terna e eterna saudade, porque ainda tínhamos muito que conversar…
Coimbra, 20 de Outubro 2001